Revista USP, n. 68
Existe preconceito racial em nosso país?
Florestan Fernandes: Na verdade, nos acostumamos à situação existente no Brasil e confundimos tolerância racial com democracia racial. Para que esta última exista não é suficiente que haja alguma harmonia nas relações raciais de pessoas pertencentes a estoques raciais diferentes ou que pertencem a “raças” distintas. Democracia significa, fundamentalmente, igualdade racial, econômica e política. Ora, no Brasil, ainda hoje não conseguimos construir uma sociedade democrática nem mesmo para os “brancos” das elites tradicionais e das classes médicas em florescimento. É uma confusão, sob muitos aspectos, farisaica pretender que o negro e o mulato contem com a igualdade de oportunidades diante do branco, em termos de renda, de prestígio social e de poder. O padrão brasileiro de relação social, ainda hoje dominante, foi construído por uma sociedade escravista, ou seja, para manter o “negro” sob a sujeição do “branco”. Enquanto esse padrão de relação social não for abolido, a distância econômica, social e política entre “negro” e “branco” será grande, embora tal coisa não seja reconhecida de modo aberto, honesto e explícito.
Os resultados da investigação que fiz, em colaboração com o Prof. Roger Bastide, demonstram que essa propalada “democracia racial” não passa, infelizmente, de um mito social. É um mito criado pela maioria e tendo em vista os interesses sociais e os valores morais da maioria; ele não ajuda o “branco” no sentido de obrigá-lo a diminuir as formas existentes de resistência à ascensão social do “negro”; nem ajuda o “negro” a tomar consciência realista da situação e lutar para modifica-la, de modo a converter a “tolerância racial” existente em um fator favorável a seu êxito como pessoa e como membro de um estoque “racial”.
Quais são os tipos de preconceito racial que existem?
Florestan Fernandes: De fato, existem várias formas socioculturais de preconceito racial. O que há de mal conosco consiste no fato de que tomamos como paralelo o tipo de preconceito racial explícito, aberto e sistemático posto em prática nos Estados Unidos. Todavia, os especialistas já evidenciaram que existem vários tipos de preconceito, e pelo menos um sociólogo brasileiro, o Prof. Oracy Nogueira, preocupou-se em caracterizar as diferenças existentes entre o preconceito racial sistemático, que ocorre nos Estados Unidos, e o preconceito dissimulado e assistemático, do tipo que se manifesta no Brasil. Já tentei, de minha parte, compreender geneticamente o nosso modo de ser. Segundo penso, o catolicismo criou um drama moral para os antigos senhores de escravos, pois a escravidão colidia com os “mores”* cristãos. Surgiu daí a tendência a disfarçar a inobservância dos “mores”, pela recusa sistemática do reconhecimento da existência de um preconceito que legitimava a própria escravidão. Sem a idéia de que o “negro” seria “inferior” e necessariamente “subordinado” ao “branco”, a escravidão não seria possível num país cristão. Tomaram-se estas noções para dar fundamento à escravidão e para alimentar outra racionalização corrente, segundo a qual o próprio negro seria “beneficiado” pela escravidão, mas sem aceitar-se a moral da relação que estabelecia entre o senhor e o escravo. Por isso, surgiu no Brasil uma espécie de preconceito reativo: o preconceito contra o preconceito de ter preconceito. Ao que parece, entendia-se que ter preconceito seria degradante e o esforço maior passou a ser o de combater a idéia de que existiria preconceito no Brasil, sem se fazer nada no sentido de melhorar a situação do negro e de acabar com as misérias inerentes ao seu destino humano na sociedade brasileira. Acho que aqui seria bom se lessem os trabalhos recentes publicados por sociólogos, antropólogos e psicólogos, mais ou menos concordantes, e, em particular, que o “branco” se reeducasse de tal maneira que pudesse pôr em prática, realmente, as disposições igualitárias que ele propala ter diante do “negro”.
Há segregação e discriminação racial no Brasil?
Florestan Fernandes: A discriminação que se pratica no Brasil é parte da herança social da sociedade escravista. No mundo em que o “negro” e o “branco” se relacionavam como escravo e senhor, este último tinha prerrogativas que aquele não possuía – nem podia possuir – como “coisa” que era e “fôlego vivo”, uma espécie de “instrumento animado das relações de produção”. A passagem da sociedade escrava para a sociedade livre não se deu em condições ideais. Ao contrario, o negro e o mulato viram-se submergidos na economia de subsistência, nivelando-se, então, com o “branco” que também não conseguia classificar-se socialmente, ou formando uma espécie de escória da grande cidade, vendo-se condenados à miséria social mais terrível e degradante. Apesar de seus ideais humanitários, o abolicionismo não conduziu os “brancos” a uma política de amparo ao negro e ao mulato. Como demonstram os resultados da análise pioneira de Roberto Simonsen, em trabalho magistral, nos momentos mais duros da transição existiram fazendeiro que defendiam a idéia de indenização. Nenhum deles se levantou em prol da indenização do escravo ou do liberto e, em conseqüência, os segmentos da população brasileira que estavam associados à condição de escravo ou de liberto viram-se nas piores condições de vida nas grandes cidades. Foram reduzidos a uma condição marginal, na qual se viram mantidos até o presente. Somente depois de 1945 começaram a surgir oportunidade de classificação na estrutura da ordem social competitiva, ainda assim, para número limitado de indivíduos potencialmente capazes de terem êxito na competição socioeconômica com os brancos. A discriminação existente é um produto do que chamei “persistência ao passado”, em todas as esferas das relações humanas na mentalidade do branco – na mentalidade do “branco” e do “negro”, nos seus ajustamentos à vida prática e na organização das instituições e dos grupos sociais. Para acabarmos com esse tipo de distriminação, seria necessário extinguir o padrão tradicional brasileiro de relação racial, e criar um novo padrão realmente igualitário e democrático de relação social, que conferisse igualdade econômica, social, cultural e política entre negros, brancos e mulatos. As mesmas idéias podem ser aplicadas à segregação. Esta foi praticada no passado senhorial, apesar da convivência por vezes íntima entre senhores e escravos. Fazia parte do duplo estilo de vida que separava espacial, moral e socialmente o “mundo da senzala” do “mundo da casa grande”. A segregação do negro é sutil e dissimulada, pois ele é confinado ao que os antigos líderes dos movimentos negros de São Paulo chamavam de porão da sociedade. As coisas estão se alterando, nos últimos tempos, mas de forma muito superficial e demorada. Para atingirmos a situação oposta, implícita no nosso mito de democracia racial, o negro e o mulato precisariam confundir-se com o branco num mundo de igualdade de oportunidades para todos, independentemente da cor da pele e da extração social. É pouco provável que isso se dê sem que os próprios negros e mulatos tenham consciência mais completa e profunda de seus interesses numa sociedade multirracial, em que eles constituem uma maioria deserdada e prescrita. Quanto tempo terá que correr para que consigam tratamento igualitário numa sociedade racialmente aberta? Essa pergunta parece-me fundamental. Os negros devem preparar-se para respondê-la e os “brancos” devem preparar-se para ajuda-los, solidariamente, a pôr em prática as soluções que a razão indicar, sem subterfúgios, e com grandeza humana.
*Mores: costumes e valores considerados essenciais por um grupo social
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