Existe preconceito racial no Brasil?
João Baptista Borges Pereira: O preconceito racial é apenas uma modalidade de preconceito. Em sentido amplo, é encontrado em todas as sociedades humanas. O preconceito é expressão do que em antropologia se denomina de etnocentrismo. O etnocentrismo é a tendência, ao que tudo indica universal, que leva indivíduos, grupos e povos à supervalorização de suas própria expressões de vida, conduzindo-as, consequentemente, a subestimar as características de outros indivíduos, grupos e povos. Atrás do preconceito está a imagem estereotipada do outro, do estranho, a exaltar qualidade, a enxergar defeitos. Portanto, o preconceito tem como ponto de apoio as características somáticas, físicas, biológicas, de determinados grupos humanos. Quando se indaga da existência desse fenômeno entre nós, há alguns pontos a serem considerados: em primeiro lugar, as sociedades do tipo multirracial, isto é, aquelas que abrigam segmentos oriundos de diversos estoques “raciais”, como é o caso do Brasil, tendem a enfrentar a erupção desse fenômeno como um problema social que surge dentro de suas fronteiras; em segundo, ainda que nossa atenção se oriente para o preconceito como problema que afeta as relações entre brancos e pretos, não nos esqueçamos que ele permeia, com menor rigor, é verdade, as interações que se estabelecem entre diferentes grupos “raciais”, brancos ou não; em terceiro lugar, precisamos distinguir o preconceito da discriminação e da segregação. A discriminação é o processo de marginalização social e cultural imposta ao homem ou ao grupo “diferente”. A segregação, por sua vez, conduz ao isolamento, inclusive geográfico, do grupo preconceituado ou discriminado. Quando se discute a situação do grupo negro no Brasil, deve-se ter em mente estas distinções. Diferentemente do que ocorre com o negro americano, o preto brasileiro é alcançado de forma velada pelo preconceito e pela discriminação, mas não é atingido pela segregação. Ainda dentro desse diapasão comparativo, enquanto o negro americano é vítima do preconceito de origem, o negro brasileiro é envolvido pelo preconceito de marca. Oracy Nogueira, sociólogo paulista, discute muito bem essa distinção, ao mostrar que, no primeiro tipo de preconceito, basta o indivíduo ter em sua ascendência alguém de cor negra para ser preconceituado. É o preconceito de sangue. No segundo caso, que reflete a situação brasileira, não interessa a ascendência do indivíduo, mas sim os seus traços, a sua marca. Se o indivíduo não apresenta traços negróides, mesmo que tenha ascendência negra, é branco, e como tal é tratado. Por fim, sempre comparativamente, o preconceito e as restrições ao negro, dentro dos padrões americanos, são feitos abertamente, às claras. No Brasil, esses fenômenos são ordenados por padrões ideais vinculados ao que se convencionou rotular de democracia racial. Por diferentes motivos, brancos e pretos evitam desafiar tais padrões e o resultado é que o preconceito e a discriminação se manifestam de maneira velada, às escondidas. Essa dissimulação, aliada ao fato de nossa realidade racial ser examinada à luz de modelos americanos, é que desnorteou alguns estudiosos, levando-os à conclusão de que no Brasil não havia preconceito racial.
Nossa vida política, educativa, cultural, religiosa (em termos cristão), raramente nos revela uma personalidade negra. O que explicaria isso?
João Baptista Borges Pereira: Essa falta de personalidades negras em diferentes dimensões da sociedade brasileira significa, é óbvio, que o grupo não participa da vida sociocultural. É, portanto, manifestação convincente de um processo de discriminação muito eficiente, ainda que velado. Entre outros fatores, há atrás desse fato o que Florestan Fernandes chama de histórica “carência institucional”. Isto é, o regime escravocrata eliminou toda e qualquer possibilidade de o negro preservar, em termos brasileiros, as suas instituições originais e, ao mesmo tempo, impediu-o de copiar e pôr em funcionamento as instituições adotadas pela cultura portuguesa, aqui identificada ao mundo dos brancos. Como se sabe, são instituições - família, por exemplo – que preparam os indivíduos para viver
Por que, excetuando trabalhos humildes, o setor artístico é o que mais recebe contribuição do negro?
João Baptista Borges Pereira: Temos aqui que distinguir cultura negra de grupo negro e negro-tema de negro-agente. Ainda que esse aspecto não tenha sido sistematicamente estudado, é lícito reconhecer que todas as expressões da cultura brasileira estão impregnadas, em maior ou menor grau, de influência da tradição negra. E essa contribuição se expressa de forma mais eloqüente nas esferas artísticas, principalmente no campo musical. Mas a aceitação de elementos culturais não significa, necessariamente, a aceitação do elemento humano a ele identificado. Assim, um homem branco pode encontrar prazer na música negra, pode se deliciar com a culinária negra, pode adotar em seu vocabulário termos de origem negra, sem contudo aceitar, como igual, o homem negro. De outro lado, o negro como tema de arte, ainda que valorizado pelo modernismo, é algo que tem encontrado grande receptividade na nossa tradição cultural. Porém, o negro-agente, isto é, aproveitamento do negro como agente humano ligado às atividades remuneradas que gravitam em torno dessas expressões artísticas, não tem seguido o mesmo ritmo. Por exemplo, toda a música erudita brasileira, a partir da década de 20 até a de 30, foi profundamente influenciada pela temática negra. Entretanto, o negro como intérprete profissional não surge na cena musical erudita. Ele aparece apenas no campo da música popular, onde, a par da revalorização e da aceitação da música urbana “negra”, o preto encontrou condições favoráveis de profissionalização.
Quais as medidas para eliminar tal conflito?
João Baptista Borges Pereira: Uma coisa parece certa: enquanto se pode pensar em medidas para atenuar as ações discriminatórias e segregatórias, pois estas se exteriorizam num plano manipulável pelo sistema formal de controle social, o mesmo não parece ocorrer em relação ao preconceito. Este é acima de tudo uma crença, e, como tal, profundamente enraizada nos domínios das emoções humanas. E esse campo paradoxal e contraditório, diferente do racional, não é facilmente alcançado pelas técnicas de esclarecimento da opinião pública. Contudo, algo pode ser tentado, embora nem isto ainda tenha sido feito entre nós: deve-se lançar mão dos modernos meios de influenciar pessoas, rádio e televisão, por exemplo, e coloca-los sistematicamente a serviço de campanha esclarecedora que irá beneficiar tanto brancos como pretos, tanto os que preconceituam, como os que são preconceituados.
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